Sexta-Feira, 19 de abril de 2024

A Cruz Violeta - Por Sergio David

Publicado em 23/08/2020. https://jornalterral.com.br/t-yzG

Por Sérgio David

Corria o ano de 1977 e eu trabalhava como engenheiro agrônomo na Emater-ES, lotado no escritório de Barra de São Francisco, região Norte do Espírito do Santo. Um belo dia fui ministrar um curso sobre a cultura do arroz irrigado no córrego da Água Doce.

Ao término das palestras fui convidado pelos agricultores para uma confraternização na venda do seu Tonico. Cachacinha pra lá, cachacinha pra cá, logo apareceu um cara tocando concertina e aí a calçada da venda virou uma festa.

Já começava a escurecer quando resolvi perguntar a razão da existência daquela cruz localizada num enorme barranco ao lado da porteira a cerca de 1 km da entrada do patrimônio.

Os agricultores se entreolharam esperando que o mais corajoso deles se manifestasse.

Até que o mais velho deles me perguntou:

– Xi, o senhor não sabe não? Nunca ouviu falar dessa tragédia que ocorreu aqui dez anos atrás?

E o velhinho me contou que a tragédia teria começado quando Maneco Vaz, pistoleiro famoso e muito temido na região, abusou da honra da filha de Cirilo Serralheiro.

Cirilo jurou vingança e ficou tocaiado numa moita, no barranco, acima da porteira, esperando pela vinda do pistoleiro.

 A partir daí, todos que passavam pelo local ouviam a voz do Cirilo tocaiado:

– Pischiiiiii... pischiiii... fecha a porteira.

E assim, durante muito tempo, todos se acostumaram a ouvir a voz de Cirilo:

– Pischiiiiii... pischiiii... fecha a porteira.

Até que numa determinada sexta-feira Maneco Vaz precisou ir ao povoado fazer as compras.

Chegou à porteira, pareou o cavalo, retirou a tranca de arame do moirão e, quando se preparava para abrir a porteira, ouviu um “click” seco. Era a garrucha do Cirilo sendo armada.

Maneco do Vaz, pistoleiro matreiro, sagaz e rápido no gatilho, imediatamente sacou do seu 38 e disparou três tiros em direção à moita do Cirilo.

Cirilo veio a falecer com dois balaços no peito e aí os parentes colocaram aquela cruz no local do óbito.

Desde esse dia, todos que passam pela porteira, nas noites de sexta-feira, ouvem ainda a voz de Cirilo:

– Pischiiiiii... pischiiii... fecha a porteira.

Terminada a estória, alguns me perguntaram se eu teria medo de passar pela porteira àquela hora. Respondi de pronto:

- Claro que não!  Não tenho medo de mortos; tenho medo é de gente viva.

Todos riram de minha resposta e depois da “saideira” despedi-me e entrei no fuscão da Emater para retornar a Barra de São Francisco.

Já estava bem escuro quando logo após a terceira curva o farol do fusca ilumina a porteira e a cruz.

A cerca de uns três metros da porteira, paro o carro, deixo o motor e os faróis ligados e caminho, vagarosamente, para abri-la.

Chego ao moirão, retiro a tranca, começo a abrir a porteira e, de repente me vejo de frente com o barranco e no alto deste, iluminada pelos faróis, aquela enorme cruz de cor prateada.

Aí, lamentavelmente, nessa hora, me lembro que o curso era dado numa sexta-feira. Subitamente os pelos dos meus braços começam a arrepiar. Abro rapidamente a porteira, mas não consigo achar o toco de escora para mantê-la aberta. Tento empurrar a porteira até o barranco, mas ela volta-se, inúmeras vezes, sobre mim.

Volto desesperadamente a procurar o toco de escora e... nada.

Já quase em pânico corro as mãos pela vegetação, abaixo da porteira, à procura de um graveto qualquer para a escora e... nada.

Os pelos dos braços e das pernas cada vez mais arrepiados.

Depois de inúmeras tentativas, finalmente acho um pequeno graveto e felizmente consigo escorar a porteira.

Num átimo, volto rapidamente, entro aliviado no fusca e passo rapidamente sem olhar para a cruz.

Desço do carro já deixando, novamente, motor e faróis ligados, e caminho em direção porteira para fechá-la.

De repente percebo que as luzes traseiras do fuscão cambiaram a cor da cruz de prata, para violeta.

Foi o bastante para além dos cabelos, dos braços e pernas, até os da cabeça ficarem eriçados.

Não consigo chegar à porteira. Vem o pânico e volto a mil para o carro. No escuro quase arrebento o peito na porta aberta do fusca.

Retorno aliviado para Barra de São Francisco, deixando a maledita porteira aberta.

Semanas depois estou na carteira agrícola do Banco do Brasil e encontro um casal de agricultores com um filho no colo. Não os reconheço imediatamente. Cumprimento-os com a sensação de tê-los visto em algum lugar. Eles respondem, sorrindo, ao cumprimento e, subitamente, o menino do colo grita:

– Dr. David, cagão.

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