Por Sérgio David
Final de 1982, a Empresa Capixaba de Pesquisa Agropecuária, por intermédio do seu Diretor Técnico, Dr. Morethson Resende, convocou a mim e ao colega Pedro Garlindo Arêas para uma reunião na sede, em Vitória.
Após o cafezinho, Dr. Morethson foi direto ao assunto:
– Pedro e Sérgio, sei que vocês são geneticistas de fruteiras tropicais, mas agora a questão é de extrema importância para a empresa. O Dr. Sérgio Regina, da Embrapa, vem fazer uma visita de inspeção em nosso programa de melhoramento genético de pêssego. Acontece que não temos mais melhoristas de fruteiras de clima temperado em nossos quadros e quero que vocês assumam esse projeto e recebam o Dr. Sérgio Regina para a fiscalização.
Ainda tentei argumentar nossa total falta de conhecimento com a cultura do pessegueiro, mas foi em vão.
– Vocês têm 30 dias para se prepararem. Amanhã cedo um carro da empresa vai leva-los até a Estação Experimental de Venda Nova para iniciarem a recuperação dos experimentos.
E lá fomos nós para a cidade de Venda Nova recuperar os experimentos do projeto que estava há três anos em total abandono.
Lá chegando, procuramos o pesquisador aposentado, Dr. Julio Pin, que nos deu a relação das cultivares e a localização dos ensaios experimentais. Para nosso espanto, a área de cerca de 1,0 ha de experimento estava totalmente coberta de mato. Já na primeira semana cuidamos da limpeza e dos tratos culturais e fitossanitários das plantas, que já estavam bastante debilitadas. Providenciamos novas placas de identificação do delineamento estatístico das 18 cultivares e suas respectivas repetições, e retornamos à sede para estudar tudo que estivesse ao nosso alcance sobre melhoramento genético de pêssego.
Preocupava-me muito as discussões técnicas que teríamos de fazer com o Dr. Sérgio Regina, posto que o tempo era muito curto para que pudesse, como queria o Dr. Morethson, travestirmo-nos de pesquisadores da cultura.
Já o colega Pedro era mais otimista e, por ser mais experiente, tentava, nas viagens de ida aos experimentos, tranquilizar-me com suas tiradas:
– Serjão, não se preocupe. Vai dar tudo certo. Tenho aqui uma idéia que vai salvar-nos.
– E qual é, Pedro?
– É o seguinte. Quando o Dr. Regina começar a perguntar pelas variedades, você fica com a prancheta nas mãos atrás de nos dois. Eu olho no pé da estaca da planta o número e faço sinal com os dedos para você. Daí você sussurra baixinho o nome da variedade que eu faço a leitura labial em você e mando bala.
– Pedro, temo que isso não dê certo. Replicava, preocupado.
E Pedro, tranquilão como sempre, dizia:
– Não tem errada, cara. Deixa comigo.
Até que chegou o derradeiro dia em que fomos ao aeroporto buscar o Dr. Sérgio Regina. Gaúcho irascível daqueles de dar inveja ao Leonel Brizola, já começou a viagem com perguntas e arguições sobre o estado do experimento e sobre o comportamento das cultivares no Espírito Santo. Pedro ia no banco da frente se virando como podia nas respostas, e eu atrás mais calado que freira de monastério.
E o gauchão já estava até acreditando na gente.
Chegando ao experimento, conforme o planejado, o Pedro ia, na frente, de olho no número das placas, e eu atrás com a prancheta com o nome das variedades.
Na primeira placa, o Dr. Regina perguntou:
– Que cultivar é essa, tchê?
Pedro, disfarçadamente, sinalizou com três dedos.
Daí eu li na prancheta e falei baixinho:
– Capdbosque
Pedro fez a leitura labial e bradou:
– Essa aí é a Capdbosque, Dr. Regina.
Daí o gauchão falou vinte minutos sobre a cultivar.
Fomos para segunda placa e de novo o gauchão:
– E essa aqui, tchê?
Pedro sinalizou sete dedos, olhei a prancheta e sussurrei:
– Ouro Mel.
E a leitura labial funcionou:
– Essa é a Ouro Mel, Dr. Regina.
Mais dez minutos discorridos sobre a variedade. O gauchão sabia muito. E eu pensava: Meu Deus, isso não vai acabar bem.
E assim foi por quase toda a tarde.
– E essa aqui, ó piá?
– Essa aí é a Jóia-1, doutor.
– E essa outra, tchê?
– Ah! Essa é a Aurora, se exibia o Pedro.
E assim foi com a Ouro Mel 2, Marfim, Chimarrita, Douradão, Chiripá, Marli, Eldorado, Dela Nona, Granada, Sentinela e Sulina, entre outras.
Eu já estava sentindo segurança na estratégia do Pedro. E a estratégia funcionou até a última placa, quando o gaúcho exclamou:
– ÓÓÓh! Que trilegal! Está aqui está me parecendo a...
O Pedro, para mostrar conhecimento, quis se antecipar ao gaúcho e, rapidamente, sinalizou com os oito dedos. Eu lí a placa V. Nova e sussurrei:
– V. Nova
Pedro fez a leitura labial, estufou o peito e mandou:
– Essa é a Venda Nova, Dr. Regina.
Dr. Sérgio Regina franziu a sobrancelha:
– Venda Nova?
E aí o Pedro se sentiu muito à vontade para também discorrer sobre a variedade.
– Sim! Trata-se de uma variedade precoce, muito produtiva e bastante rústica, provavelmente, uma mutação local, selecionada pelos produtores aqui de Venda Nova. Por isso a colocamos na última placa do ensaio.
E Dr. Sérgio Regina, com enorme conhecimento, respondeu:
– Tchê, eu não conheço, no mundo, nenhuma variedade chamada Venda Nova. Bááááá tchê. Está me parecendo ser a Vila Nova, uma variedade que eu lancei em 1954. Será que não é a minha variedade?
E era!!!!!!