A minha bela, doce e bucólica Vargem Alta, na década de 1960, então distrito de Cachoeiro do Itapemirim, está localizada na região sul montanhosa do Espírito Santo e se destacava por apresentar o melhor carnaval de rua do Estado.
Mas, a festa de maior repercussão no distrito, colonizado por famílias tradicionalmente católicas e de origem árabe e italiana, era a festa da Imaculada Conceição, a santa padroeira da “Princesinha das Montanhas”. Com a liderança icônica do pároco local, o padre Antônio Maria, os festejos eram tão grandiosos que chegavam a atrair tantos turistas quanto os do próprio carnaval.
Já às 6h da manhã, Antônio Nunes badalava os três sinos dando o primeiro sinal da Santa Missa. Durante todo o dia fogos de artifício pipocavam sobre as ruas e as barraquinhas da quermesse ficavam apinhadas de gente comprando imagens, escapulários, santinhos, água benta, capelete, quibes crus e hommus tahine, além de doces sírios, italianos e outras iguarias.
Às 10h, após o “terceiro sinal” de Antônio Nunes, a igreja já estava lotada. Presentes as famílias do lugar. Os David (Daoud), Abu Dioan, Teixeira, Moreira, Carmo, Guimarães, Dalvi, Fabri, Fassarela, Monteiro, Salles e Gasparini, entre outras.
Os bancos da frente e à direita do altar-mor eram reservados, hierarquicamente, para os notáveis membros honorários da “Congregação Mariana”. Estes usavam sobre a camisa domingueira uma fita de cor azul claro, em sentido diagonal ao peito, que lhes causava indisfarçável orgulho, por diferenciá-los dos demais mortais, hereges, árabes e italianos.
À esquerda do altar sentavam-se as “Filhas-de-Maria”, com a cabeça adornada com véus brancos e fitas diagonais de cor vermelha, no peito, culminando, no centro das faixas diagonais, com a foto do Sagrado Coração de Jesus.
Os bancos do meio eram das mocinhas namoradeiras e os do fundo das donzelas de reputação menos ortodoxa.
E após duas longas horas de missa em latim começa a procissão.
À frente o Padre Antônio Maria, devidamente paramentado, carregava e erguia, com muito júbilo, sobre a cabeça, o reluzente ostensório. Logo atrás os Congregados liderados por Milton David, seguidos das beatas comandadas por vovó Alice e suas congregadas: Tia Maria, Cacilda, Tia Ináh, Detinha, tia Hilda, Dona Leopoldina e Tia Lili.
Jovens e crianças carregavam lamparinas, feitas de velas envoltas em papel celofane de variadas cores, colocadas sobre varas de bambu, para enfeitar e clarear todo o caminho da procissão.
O primeiro andor é o da imagem do Sagrado Coração, carregado nos ombros de Nicula, Delecrode, Sapo Cheiroso e Tiba.
O segundo andor, puxado por João Reis, Geraldo Cristino, Gerôncio de Paiva e Tião cabeça-de-porco, traz a imagem do Cristo carregando a Cruz.
Na saída da capela padre Antônio Maria não se contém, volta e destitui a imagem de São Benedito do terceiro andor, ocupando ele mesmo a imagem do santo. Sobe, rapidamente, com um megafone nas mãos para dar as ordens sacras. Tuffy David, Gilson, Jorge e Dedei com as pesadas alças de madeira sobre os ombros lutam para tentar manter o padre equilibrado sobre o andor. Aí o padre, muito animado, inicia a puxada da cantoria:
– Deixa a luz do céu entrar, gente.
E a procissão capitaneada pelas vozes agudas das beatas e freiras, em uníssono canta:
– Deixa a luz do céu entraaaar, deixa a luz do céu entraaar, abre bem as portas do meu coração, e deixa a luz do céu entrar.
A procissão entra na Rua Escura, passa em frente ao Montanhês Club e já de frente ao cemitério padre Antônio, eufórico, se equilibrando como pode, puxa a segunda cantoria:
– Agora, Segura na mão de Deus, gente.
E a turco-italianada, já meio que emocionada, continua:
– Se as águas do mar da vida quiserem te ofuscar, segura na mão de Deus e váááá. Segura na mão de Deus, segura na mão de Deus, segura na mão de Deus e vááááá.
Ao passar em frente a Assembleia de Deus, padre Antônio, em tom provocativo, manda outra:
– A nós descei divina luz minha gente.
E a procissão em júbilo, repete a cantilena:
– A nós descei, Divinaaaa Luz, a nós descei, Divinaaa Luz, e em nossas almas ascendei, o amor, o amor de Jesus.
Até que, na última curva da pracinha, em frente à barbearia do Berico, a procissão começa a contornar à esquerda, para subir a inclinadíssima rua Felippe David.
Na virada da curva, somente o padre Antônio Maria, de cima do andor, pôde ver a jardineira do meu pai, Leocádio Marin, lá do alto da capela, descendo ladeira abaixo, em altíssima velocidade, desembestada e sem freio, em sentido contrário à procissão.
Prevendo uma grande tragédia, padre Olívio desesperado, grita no megafone:
– A jardineira, gente! Pelo amor de Deus, a jardineira, gente!
E a procissão toda, sem saber o que se passava, em tom uníssono, emendou a marchinha:
– O jardineira por que estas tão triste. Mas o que foi que te aconteceu?...
E a Festa da Imaculada Conceição na “princesinha das montanhas capixabas” acabou, para desespero do padre Antônio Maria, em mais um animadíssimo Carnaval.