Domingo, 28 de abril de 2024

O "Seu Cunha" do Cartório - Por Sergio David

Publicado em 09/04/2021. https://jornalterral.com.br/t-k8Y

* Homenagem ao querido tio Dr. Milton David (in memoriam), que há muitos anos contou-me esse “causo”.

 

Década de 1950, na pequena e bucólica Vargem Alta, então distrito de Cachoeiro de Itapemirim (ES), existia o Cartório de Registro do “Seu Cunha”.

Cunha, embora não tivesse frequentado nenhuma faculdade, tornou-se, com o tempo, um notável autodidata face a sua avidez por leitura e por cultura.

A despeito disso, a carência de um curso superior causava-lhe certa frustração, o que, invariavelmente, o levava a fazer questão de se mostrar culto.

Um belo dia o mulato Leleu chegou à porta do cartório e perguntou:

– Seu Cunha, é verdade que o senhor colocou o nome do seu filho de Leônidas em homenagem a Leônidas, o “Diamante Negro”, da seleção brasileira de futebol?

Cunha ruborizou-se.

– Quem lhe disse essa blasfêmia, Seu Leleu?

– O Pimentel da Coletoria, lá no bar do Delecampio.

– Pimentel é um mentecapto, compreendeu? Fale para aquele cabotino que eu coloquei o nome de Leônidas no meu filho em homenagem a Leônidas da Batalha das Termópilas, compreendeu? Aquele energúmeno vai passar cem anos cobrando impostos sem saber que existiu a guerra dos 300, de Leônidas e Xerxes, compreendeu? Imbecil é o melhor epíteto que lhe cabe, compreendeu?

Era “Seu Cunha” desfiando veneno e cultura.

E aí, a qualquer encontro social ou político do lugarejo era o Cunha que abria e fechava os discursos cerimoniais. Discursos esses quase sempre alardeados de muita pompa, notada exibição cultural e sempre culminando com o enfadonho “compreendeu”.

Até que um dia comemorava-se o aniversário de oitenta anos do Sr. Elizeu Gasparini.

Cunha, como sempre, tomava posição na cabeceira da mesa, para iniciar e coordenar os discursos.

– Para dar início a essa cerimônia, compreendeu, convidamos o meritíssimo Juiz de direito de nossa comarca, o Dr. Arione de Vasconcellos, para saudar o nosso querido e estimado aniversariante.

Sob aplausos, Dr. Arione iniciou o seu discurso:

Quero dizer que conheço o Elizeu desde que cheguei a essa comarca. Trata-se de um homem direito, honesto, ajuizado, íntegro, confiável, justo, credível, digno, decente e etc, etc.

Após uma hora de elogios, a palavra retorna para a cabeceira da mesa, púlpito de honra de Cunha:

Vai falar agora, compreendeu, o digníssimo delegado de nosso distrito, o Sr. Antônio Lima.

E aí, Antônio Lima disse em mais de uma hora que o Elizeu além direito, honesto e trabalhador era honrado, dedicado, decoroso, ponderado, disciplinado, educado, valoroso, responsável, respeitador, corajoso, prudente, consciencioso, confiável, pacato e etc, etc.

– Convidamos para falar agora, compreendeu, o nosso farmacêutico, o Sr.Octacílio Geraldo do Carmo.

O Octacílio, em cerca de meia hora, ressaltou que Elizeu era companheiro, perseverante, determinado, cuidadoso, comunicativo, compreensivo, verdadeiro, modesto, cavalheiro, amigável, sincero, empreendedor, amável, brioso, autêntico e etc, etc.

– Vai falar agora, compreendeu, o jovem médico de nosso hospital, o Dr. Milton David.

Aí, o Dr. Milton, em mais uns vinte minutos, preferiu frisar o valor famíliar, ressaltando o quão bom filho, pai, tio e avô era o amigo Elizeu.

– Convidamos agora, compreendeu, o vigário de nossa paróquia, Vossa Reverendíssima, o padre Antônio Maria.

E aí o padre disse que o Elizeu era um bom cristão, de compaixão, humanitário, prestativo, caritativo, solícito, cordial, dedicado, cortês, altruísta, zeloso, bondoso, benévolo, carismático e de muita fé na santa igreja católica e etc, etc.

Após o padre, a palavra retornou para a cabeceira da mesa, onde o Cunha já se postava para encerrar com toda galhardia e teatralidade o seu discurso final.

Ergueu-se da mesa, pigarreou, levou uma das mãos ao peito e a outra em direção ao aniversariante.

– Elizeu...compreendeu!

Silêncio na plateia.

Elizeeu... compreendeu!

Silêncio total na plateia.

Elizeeeu...compreendeu!

Silêncio e tensão na plateia.

– Elizeeeeu...compreendeu?

Todos os adjetivos qualificativos já haviam se exaurido nas falas anteriores e Cunha tentava rebuscar na memória algum adjetivo que pudesse verbalizar de forma inédita.

E nada...

- Elizeeeeeu...compreendeu?

E aí, percebendo que não lhe vinha nada, esticou a palma da mão em direção ao homenageado, empostou a voz e, para o alívio e aplausos da plateia, como se dissesse tudo, bradou

Elizeu Gasparini!!!!

 

Além dos verbosos e jactanciosos discursos, Cunha era também dotado de um pragmatismo obstinadamente exacerbado. Assim, em uma bela tarde de verão, um agricultor chegou ao cartório reclamando:

- Seu Cunha, a certidão do nascimento de meu filho foi feita errada. Ele se chama DIOGO e aqui tá escrito DIGO. Engoliram o “O”.

Cunha, não se fez de rogado. Tomou a certidão da mão do homem, colocou-a no carretel da sua velha “Remington Rand” e no fim da certidão datilografou:

“Onde digo DIGO não digo DIGO, digo DIOGO”

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