* Homenagem ao querido tio Dr. Milton David (in memoriam), que há muitos anos contou-me esse “causo”.
Década de 1950, na pequena e bucólica Vargem Alta, então distrito de Cachoeiro de Itapemirim (ES), existia o Cartório de Registro do “Seu Cunha”.
Cunha, embora não tivesse frequentado nenhuma faculdade, tornou-se, com o tempo, um notável autodidata face a sua avidez por leitura e por cultura.
A despeito disso, a carência de um curso superior causava-lhe certa frustração, o que, invariavelmente, o levava a fazer questão de se mostrar culto.
Um belo dia o mulato Leleu chegou à porta do cartório e perguntou:
– Seu Cunha, é verdade que o senhor colocou o nome do seu filho de Leônidas em homenagem a Leônidas, o “Diamante Negro”, da seleção brasileira de futebol?
Cunha ruborizou-se.
– Quem lhe disse essa blasfêmia, Seu Leleu?
– O Pimentel da Coletoria, lá no bar do Delecampio.
– Pimentel é um mentecapto, compreendeu? Fale para aquele cabotino que eu coloquei o nome de Leônidas no meu filho em homenagem a Leônidas da Batalha das Termópilas, compreendeu? Aquele energúmeno vai passar cem anos cobrando impostos sem saber que existiu a guerra dos 300, de Leônidas e Xerxes, compreendeu? Imbecil é o melhor epíteto que lhe cabe, compreendeu?
Era “Seu Cunha” desfiando veneno e cultura.
E aí, a qualquer encontro social ou político do lugarejo era o Cunha que abria e fechava os discursos cerimoniais. Discursos esses quase sempre alardeados de muita pompa, notada exibição cultural e sempre culminando com o enfadonho “compreendeu”.
Até que um dia comemorava-se o aniversário de oitenta anos do Sr. Elizeu Gasparini.
Cunha, como sempre, tomava posição na cabeceira da mesa, para iniciar e coordenar os discursos.
– Para dar início a essa cerimônia, compreendeu, convidamos o meritíssimo Juiz de direito de nossa comarca, o Dr. Arione de Vasconcellos, para saudar o nosso querido e estimado aniversariante.
Sob aplausos, Dr. Arione iniciou o seu discurso:
– Quero dizer que conheço o Elizeu desde que cheguei a essa comarca. Trata-se de um homem direito, honesto, ajuizado, íntegro, confiável, justo, credível, digno, decente e etc, etc.
Após uma hora de elogios, a palavra retorna para a cabeceira da mesa, púlpito de honra de Cunha:
– Vai falar agora, compreendeu, o digníssimo delegado de nosso distrito, o Sr. Antônio Lima.
E aí, Antônio Lima disse em mais de uma hora que o Elizeu além direito, honesto e trabalhador era honrado, dedicado, decoroso, ponderado, disciplinado, educado, valoroso, responsável, respeitador, corajoso, prudente, consciencioso, confiável, pacato e etc, etc.
– Convidamos para falar agora, compreendeu, o nosso farmacêutico, o Sr.Octacílio Geraldo do Carmo.
O Octacílio, em cerca de meia hora, ressaltou que Elizeu era companheiro, perseverante, determinado, cuidadoso, comunicativo, compreensivo, verdadeiro, modesto, cavalheiro, amigável, sincero, empreendedor, amável, brioso, autêntico e etc, etc.
– Vai falar agora, compreendeu, o jovem médico de nosso hospital, o Dr. Milton David.
Aí, o Dr. Milton, em mais uns vinte minutos, preferiu frisar o valor famíliar, ressaltando o quão bom filho, pai, tio e avô era o amigo Elizeu.
– Convidamos agora, compreendeu, o vigário de nossa paróquia, Vossa Reverendíssima, o padre Antônio Maria.
E aí o padre disse que o Elizeu era um bom cristão, de compaixão, humanitário, prestativo, caritativo, solícito, cordial, dedicado, cortês, altruísta, zeloso, bondoso, benévolo, carismático e de muita fé na santa igreja católica e etc, etc.
Após o padre, a palavra retornou para a cabeceira da mesa, onde o Cunha já se postava para encerrar com toda galhardia e teatralidade o seu discurso final.
Ergueu-se da mesa, pigarreou, levou uma das mãos ao peito e a outra em direção ao aniversariante.
– Elizeu...compreendeu!
Silêncio na plateia.
– Elizeeu... compreendeu!
Silêncio total na plateia.
– Elizeeeu...compreendeu!
Silêncio e tensão na plateia.
– Elizeeeeu...compreendeu?
Todos os adjetivos qualificativos já haviam se exaurido nas falas anteriores e Cunha tentava rebuscar na memória algum adjetivo que pudesse verbalizar de forma inédita.
E nada...
- Elizeeeeeu...compreendeu?
E aí, percebendo que não lhe vinha nada, esticou a palma da mão em direção ao homenageado, empostou a voz e, para o alívio e aplausos da plateia, como se dissesse tudo, bradou
– Elizeu Gasparini!!!!
Além dos verbosos e jactanciosos discursos, Cunha era também dotado de um pragmatismo obstinadamente exacerbado. Assim, em uma bela tarde de verão, um agricultor chegou ao cartório reclamando:
- Seu Cunha, a certidão do nascimento de meu filho foi feita errada. Ele se chama DIOGO e aqui tá escrito DIGO. Engoliram o “O”.
Cunha, não se fez de rogado. Tomou a certidão da mão do homem, colocou-a no carretel da sua velha “Remington Rand” e no fim da certidão datilografou:
“Onde digo DIGO não digo DIGO, digo DIOGO”