Por Sergio David
Em 10 de março de 1981 nascia Matheus, o meu primeiro filho. Morava no balneário de Nova Almeida, Serra (ES), e era uma época financeiramente muito difícil. Recebia muito pouco como engenheiro agrônomo da Emater-ES.
Já havia vendido meu caro e tinha que diariamente pegar dois ônibus para trabalhar no município de Viana, ES. Até que um dia informaram-me que o governo federal dava um auxílio natalidade, de valor igual a um salário mínimo, para filhos recém-nascidos.
Naquela época, por ser funcionário público, acreditava piamente nas coisas de governo e o aperto financeiro fez-me partir firmemente disposto a receber o tal auxílio.
Solicitei um dia de dispensa do serviço e às 7h da manhã seguinte tomei um busão em direção à capital. Cheguei ao posto do INSS ás 9h e enfrentei uma fila de cerca de 40 pessoas.
Depois de duas horas fui, finalmente, atendido por um funcionário público que, sem ao menos olhar meus documentos, bradou:
– Para receber o auxílio só com senha. Volte amanhã às 5h da manhã, quando distribuímos a senha. O atendimento começa às 7h..
Retornei de ônibus para Nova Almeida já pensando em desistir do auxílio.
No outro dia acordei às 4h, tomei o ônibus das 4h15 e às 6h já encontrei umas 30 pessoas na fila da senha.
Chegou a minha vez, apresentei meus documentos e a certidão de nascimento do Matheus.
– Seu filho nasceu na Pró-Matre de Vitória?
– Sim.
– Nascidos na Pró-Matre recebem o auxílio lá no INSS de Campo Grande.
Já que estava no fogo, melhor se queimar. Tomei outro ônibus para o bairro Campo Grande já meio puto da vida.
Uma hora depois, outra fila de mais umas 20 pessoas, finalmente sou atendido por uma tal dona Mariquinha. Funcionária do INSS com, segundo me informaram na fila, uns 50 anos de INSS e de péssimo atendimento ao público
Mariquinha olhou meus documentos e, por detrás do vidro, com voz rouca e áspera falou:
– Onde está o comprovante do hospital e do médico de que seu filho nasceu?
– Minha senhora, aí tem a certidão de nascimento.
– Sem os comprovantes não posso pagar.
Então tentei sensibilizá-la:
– Minha senhora, a clinica fica a duas horas daqui. E depois disso ainda vou ter que enfrentar outra fila para ser atendido?
Mariquinha replicou;
– Se o senhor chegar aqui até as 16h eu te atendo; depois não estou mais aqui e o senhor vai ter mesmo que ir pra fila.
Mais duas horas de ônibus depois, eis que estava novamente na frente de dona Mariquinha.
– Sim, mas o médico não preencheu a ficha. Só assinou. Não posso pagar.
Então saí da fila e no primeiro balcão que encontrei preenchi a maledita ficha.
Deparei-me de novo de frente com a Mariquinha:
– Já de volta? O senhor pensa que me engana? Não deu tempo pro senhor ir até lá. O senhor que preencheu e, de mais a mais, a cor da tinta é diferente. Não é a caneta do médico. Não posso pagar.
Aí estourei:
– Vai pagar sim. Vai pagar sim. Eu não saio daqui sem receber. Eu peguei um helicóptero. Agora prova que não.
– Sai daqui. Não posso te pagar, não vou te pagar, não vou te pagar.
– Não saio, não saio. Não saio desse guichê sem receber esse merda de auxílio até a senhora me pagar. E tem mais, você já passou da hora de se aposentar, sua burocrata mal educada e incompetente.
Pronto. Foi o bastante para Mariquinha surtar. Começou a tremer, espumar e gritar feito uma louca. A seguir levantou-se bruscamente, pegou sua cadeira de ferro e sentou com toda força no chão. A cadeira de ferro envergou-se toda e Mariquinha foi ao chão simulando um infarto do miocárdio.
Confusão geral. Desceu toda a equipe do INSS para acudi-la.
Mariquinha espumava e com os olhos esbugalhados não falava nada, só apontava para mim.
– É ele, é ele, é ele.
Chamaram a polícia.
Aí a turma da fila entrou do meu lado e as coisas meio que se acalmaram. Mandaram-me para o sétimo andar conversar com o chefe geral.
– Seu Sérgio, calma. Vamos resolver a situação. O senhor vai receber seu recurso. Há anos que nossa funcionária já devia ter se aposentado, mas acontece que ela não quer sair. Infelizmente só ela é designada para fazer o pagamento. Já conversei com Mariquinha. O senhor não vai enfrentar outra fila e ela vai te pagar. Mas, te peço: não diga nada para ela. O senhor pode fazer isso?
– Claro que posso. É só ela não me provocar.
– Não, seu Sérgio, eu estou te pedindo. O senhor não vai falar nada e ela vai te pagar.
Voltei para o terceiro andar, cheguei ao guichê e pela primeira vez a Mariquinha me olhou nos olhos. Os dela estavam arraigados de sangue.
Verificou meus documentos minuciosamente, durante uns cinco minutos, ávida por achar algum erro.
– Olha, siminino (sic). Eu vou te pagar.
E páá. Era o som no primeiro carimbo na documentação.
– Mas você é muito folgado.
E pááá, era a segunda carimbada.
– Muito abusado.
E páááá, com mais força, no terceiro carimbo.
– Muito teimoso.
E páááááá, na quarta carimbada com muito mais força ainda.
E pááááááá no quinto carimbo com tanta força que chegou a rasgar a certidão.
– E muito mal educado.
E assim foi proferindo contra mim todos os adjetivos desqualificativos possíveis, do sexto até o décimo segundo carimbo.
Quase chorando, ela pagou, finalmente, o fatídico e mísero salário mínimo, não sem antes ainda dizer:
– Espero que o senhor não tenha mais filhos; e quero que o senhor saiba que só vou lhe pagar porque sou uma excelente servidora pública.