Sábado, 23 de novembro de 2024

O cupinzeiro - Por Sergio David

Publicado em 06/04/2020. https://jornalterral.com.br/t-yXL

Início de 1976 e eu assumia o meu primeiro emprego como engenheiro agrônomo da Emater - ES, lotado no Escritório Local de Barra de São Francisco, na região Norte do Espírito Santo. Na primeira visita ao campo o meu chefe informou que, por ser novato, deveria acompanhar o trabalho de um agrônomo com mais experiência no serviço.

Foi assim o meu primeiro contato com o agrônomo Dr. João Fernandes Vieira, que devido seus inúmeros casos folclóricos era vulgarmente conhecido por “João Catraca”.

Ao entrarmos no “fusca” da empresa, ele, com aquele “ar de veterano doutor”, foi logo perguntando:

 Calouro, onde você se formou?

Eu, meio assustado, respondi:

– Na Universidade Federal de Viçosa.

Ele, dirigindo em alta velocidade e com apenas uma única mão no volante, prossegue:

– Quem foi seu professor de Extensão Rural?

– Foi o Dr. Francisco Machado.

Ele me olhou do canto dos olhos e, com aquele ar de superioridade, de dar inveja a ministros do STF, emendou:

– Calouro, esqueça tudo!!!  Vai começar uma nova era em sua vida.

E lá fomos nós rumo à nova era.

Na primeira propriedade ele ministrava uma palestra para uns 30 agricultores sobre a necessidade do uso da água filtrada para consumo humano. Explicava:

– Vocês têm que usar filtros para evitar os micróbios. Porque os micróbios da água causam diarreia. Os micróbios da água entram na pele e causam lombrigas na barriga. Os micróbios podem causar leishmaniose. Os micróbios...

Micróbio pra cá, micróbio pra lá, eis que subitamente ele é interrompido por um agricultor:

– Mas, doutor, o que é micróbio?

– Olha, vou te responder com suas palavras, porque se eu te responder com as minhas você não vai entender, OK?

– Micróbio é um bicho tão pequenininho, mas tão pequenininho, que se você juntar um metro de altura dele, você não consegue ver. Entendeu?

Partimos para a segunda fazenda onde o Dr. João, na semana anterior, havia aplicado o gás brometo de metila sob a lona plástica, que na época era a prática mais recomendada para o controle de cupins.

Ao sairmos do veículo, ele sussurrou ao meu ouvido:

– Calouro, preste muita atenção porque essa é a primeira prática de campo que você vai assistir e depois eu vou te arguir ouviu?

E lá estava aquele enorme cupinzeiro coberto com uma lona plástica de cor preta, rodeado por uns 40 agricultores.

Confesso que me assustei e de pronto imaginei que o gás do brometo de metila devia ter se evaporado totalmente, face à grande quantidade de furos e rasgos na já avariada lona.

Com aquela pose peculiar, o Dr. João iniciou a “demonstração de método”

– Quero convidar o dono da propriedade, o Seu João Ribeiro, para descobrir a lona e dar a primeira enxadada no cupinzeiro. Os senhores verão que não tem mais cupim nenhum. O brometo de metila é um tiro para essa praga.

Seu João deu a primeira enxadada... e aí voou cupim pra tudo que foi lado.

Dr. João Catraca não arrefeceu:

– Pode cavar mais fundo que esses aí são só os superficiais... pode cavar mais!!!!

Na segunda enxadada começou a subir aquela montoeira de cupim pelo cabo da enxada.

Na terceira enxadada, o céu quase escureceu de tanto cupim.

Quando os agricultores começaram a rir, o Dr. João gritou:

– Péra aí. Choveu por aqui nessa  semana?

– Choveu sim, na quarta-feira, disseram.

Aí ele estufou o peito e mandou:

– Aaah!!!!! O brometo de metila que é HBrO2  reagiu com o H2O da chuva e formou o precipitado H3BO3  tirando o efeito curativo do produto. A culpa, portanto é da chuva!!!!!

No caminho de volta, ele já dirigindo devagar, com as duas mãos ao volante, não me arguiu, não mais me chamou de calouro e humildemente perguntou:

– Você passou com que conceito em Química Inorgânica lá em Viçosa?

Eu, que havia passado com o conceito C, optei por mentir para ver sua reação:

– Passei com conceito A. Por que a pergunta, Dr. João?

– Por nada não, só queria saber.

Passado alguns minutos, ele iniciou o processo de sedução:

– Gostei da sua postura durante as minhas palestras. Mostrou serenidade e discernimento ao sabiamente optar por ouvir mais e falar menos.

E eu calado, naquela de excelente aluno de química.

Depois de um silêncio sepulcral, ele finalmente se rendeu:

– Dr. Sérgio, você sabe, né? Que aquele H3BrO3 não existe não, né?

Foi a primeira vez que fui chamado de doutor, a despeito de os micróbios, a chuva, os cupins e a química inorgânica impedirem o começo do meu rumo à nova era.

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